quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Reinterpretando “À espera dos bárbaros”, de Coetzee, a pensar nas receitas do FMI para a crise





CRUIKSHANK, George -1792-1878  - BONEY STARK MAD
Tradução do título: "Bonaparte louco de raiva ou mais navios, colónias e comércio”, caricatura  de 02.01.1808, British Museum, sobre a chegada das tropas napoleónicas invasoras a Lisboa e a expulsão do rei português para o Brasil a mando inglês

A novela de Coetzee foi publicada em 1980, ainda durante a vigência do Apartheid na África do Sul. Nela o escritor sul-africano,  laureado duas vezes com o Nobel,  traça-nos um retrato da opressão colonial, sendo assim uma obra comprometida de denúncia da situação desumana dos negros, os bárbaros. A narrativa centra-se na experiência,  narrada na primeira pessoa, por um único personagem , um velho magistrado de uma vilória, com uma  vida monótona, pontuada  entre a burocracia de administrar a sua cidade e a conversação amena com os amigos.
Envelhecia em paz, até à chegada do coronel Joll, da temida Terceira Divisão da Guarda Civil. Com ordens de promover uma missão contra os bárbaros, Joll confronta-se com os princípios do magistrado, que inicialmente se mantém discreto na defesa dos seus ideais. Mas, com as práticas desumanas utilizadas pelo coronel, o magistrado vai deixando transparecer o seu desconforto, perguntando quem são os verdadeiros bárbaros, até ser considerado um traidor.
Vou servir-me do fio da narrativa aplicando-a, com as devidas distâncias, à nossa situação atual de subordinação “colonial” aos impérios da finança internacional e ao Diktat dos coronéis e funcionários dos FMIs.
 A notícia de hoje do Jornal de Negócios, que indica a receita proposta pelo FMI a seguir por Portugal para recuperar os 4000 milhões em falta, foi o seu pretexto imediato deste plágio. Ainda atónito face ao despudor de penalizar sempre os mesmos, os que estão na mó de baixo, fica-me a dúvida se os funcionários destes próceres chegarão um dia ao desfecho do funcionário de Coetze. Este, por erro de análise da situação ou por tibieza moral, pensava, com toda a sua bondade, estar a servir a paz pública, mas estava a servir os interesses do império. Pode assim servir como alegoria dos funcionários que hoje, nos centros de decisão do Levitã que comanda o funcionamento dos Estados, esmifram até ao tutano o sangue dos mais fracos, todos nós. Mas às vezes o feitiço vira-se contra o feiticeiro. A história é lenta mas está aberta.
Acto 1 - O funcionário combate na defesa dos bárbaros:
 “Numa determinada época do ano, sabe, os nómadas visitam-nos para negociar. Bem: vá até qualquer barraca do mercado nessa época e veja quem é roubado no peso, é enganado, ofendido e intimidado. Veja quem é forçado a deixar as suas mulheres para trás, no acampamento, por medo de que sejam insultadas pelos soldados. Veja quem está caído bêbado na sarjeta, e veja quem pontapeia aquele que está caído. É esse desprezo pelos bárbaros, desprezo demonstrado pelo menor dos moços de estrebaria ou camponês, que eu como magistrado venho combatendo há vinte anos.”
Acto 2 - O funcionário bondoso está atento:
“Não ouço nenhum dos gritos do celeiro que, posteriormente, muitos afirmariam ter ouvido. Em cada momento dessa noite, enquanto me dedico aminhas ocupações, estou ciente do que pode estar a acontecer, e os meus ouvidos estão mesmo ajustados às vibrações do sofrimento humano. Mas o celeiro é uma construção sólida, com portas pesadas e janelas pequenas; fica além do matadouro e do moinho, ao sul da aldeia. Afinal, o que, outrora, foi um posto avançado e, depois, um forte fronteiriço acabou por se transformar numa colônia agrícola, numa aldeia de três mil almas; aqui, o bulício da vida, o bulício que todas essas almas são capazes de fazer, numa noite quente de verão, não cessa simplesmente porque, em algum lugar, alguém está a gritar. (De certo modo, começo a pleitear em causa própria.
Acto 3 - O funcionário exemplar acaba por sancionar a opressão :
“Não me queria envolver nisso. Sou um magistrado rural, um alto funcionário do Império, e estou completando o meu tempo de serviço nesta fronteira pacata, à espera da aposentadoria. Recolho o dízimo e os impostos, administro as terras comunais, abasteço a guarnição militar, supervisiono os funcionários novos, que são os únicos que temos aqui, controlo o comércio, presido o tribunal de justiça duas vezes por semana. No mais, contemplo a alvorada e o pôr-do-sol, como, bebo e estou satisfeito. Espero merecer três linhas na Gazeta Imperial ao morrer. Nunca pedi mais que uma vida tranquila em tempos tranquilos. No ano passado, contudo, começaram a chegar notícias da capital sobre a inquietação entre os bárbaros. Mercadores que viajavam por estradas seguras foram atacados e saqueados. O roubo de gado cresceu em escala e em audácia. Um grupo de funcionários do censo desapareceu e foi encontrado enterrado em cova rasa. Dispararam contra o governador provincial durante uma viagem de inspeção. Houve choques com as patrulhas fronteiriças. Segundo os boatos, as tribos bárbaras estavam a armar-se; o Império tinha de tomar medidas preventivas, pois, certamente, haveria guerra.”
Ato 4 - O funcionário assiste, como Gyges da fábula de Platão, à diversão dos “civilizados”:
“Durante alguns dias, os pescadores, com o seu estranho tagarelar, a sua falta de vergonha animal, o seu apetite enorme, a sua índole volúvel, são uma diversão. Os soldados, recostados na soleira da porta, observam-nos, riem-se, fazendo a seu respeito comentários obscenos e incompreensíveis para eles; sempre há crianças com o rosto comprimido contra as grades do portão; e, de minha janela, fico a olhar atentamente para baixo, invisível atrás da vidraça.”




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